sábado, 27 de junho de 2015

Poema melancólico de alcova

Raios e trovões: o céu despenca, em uma fúria de sons e luzes,
como nunca se viu antes. Estamos protegidos por longas paredes
e muros altos. A tempestade bate à porta furiosa, porém aqui ela
não entra. Escuto teus ruídos como animais que estão a cercar sua
presa, cantos malditos por corredores vazios. A chuva molha a
vidraça, escorre contornando uma silhueta feminina, um reflexo
que espreita pela porta logo atrás de mim, um leve sorriso, um
movimento de mãos e uma taça vazia que anseia por mais vinho.


Invado teu recinto e teus olhos com a minha pálida face, com os
meus sôfregos passos, com a luz de parasselênio do pequeno castiçal
que carrego. Clair de lune flutua pelos corredores escuros em busca
de mais um cálice de vinho, bebida que mancha minha pele com sangue
e mancha teus macróbios lábios com versos negros de invernos cinzentos.
Rogo que o inverno de nossa alma vague, com o som de Debussy, pelo
interior deste castelo e que se esconda, em velhos baús abandonados, pelos
esquecidos aposentos das óperas outrora dramatizadas por insanos solitários.


O silêncio nasce antes do estremecer da terra. Na escuridão, guiado por
afagos da luz amarelada, das velas e do cristal das taças, reluz o doce amargo
do vinho. Uma visão: através da grande vidraça, as copas das árvores, em seu
balançar, dançam tomadas por seus pares, os impetuosos e delicados ventos.
“A última taça, minha estimada”, assim é oferecido. O último olhar lançado à
tempestade antes que ela cesse, antes que a música silencie, antes que as velas
se apaguem, antes que o dia nasça e, com ele, retorne o velho Sol brilhante.


Teus dedos já não tremem como antes e teus olhos já não sangram como
costumavam sangrar. Minhas mãos já não são gélidas e meus desejos
tornam-se cálidos. O vinho se faz insuficiente e o silêncio se transforma
em uma eterna melodia celta. Os pedidos nascem na garganta e desabam
ao estômago. As gotas da chuva presas nas vidraças voam direto às nossas
faces e tornam-se lágrimas pesadas de almas que foram olvidadas por um
deus desconhecido. Não há luz. Não há sabor. Não há silêncio. Há dor.
Por outra vez – e para sempre – há o vetusto medo de não ser o que se é.


Laís Grass Possebon & Eduardo Lima


Blog Utopia Cotidiana, por Eduardo Lima

segunda-feira, 22 de junho de 2015

8

Vejo-me melhor em poemas do que
em fotografias alegres de domingos
falsos quando palavras fáceis soam
como a magia da flauta de Mársias.
Talvez sejam as lentes frágeis destes
velhos óculos quadrados que já não
servem para demonstrar minha face
mas apenas meus dizeres em versos.


Observo-te solitária e ofuscada pelo
tempo de parasselênio da saudade
azul daquele antigo amado bardo
que te escreveu em uma folha em
branco e que te queimou com uma
vela branca sem guardar tuas cinzas
em um pote ou jogá-las em um lago.


Reescrevo-me todas as noites antes
de me recolher aos meus aposentos
e costuro este coração com pedaços
de nomes de gente ou com linhas de
estrofes mudas de uma poesia escrita
por Rimbaud antes de sua partida.  


Recordo-te pequena sobre a cama
sem ter o que falar nem o que ouvir
e lembro-me que compartir o silêncio
é o método mais sincero de se declarar
o amor conservado entre duas pessoas.


Beijo-te sem movimentar meus olhos
melancólicos como naquela tarde fria
de junho quando dormi no teu sofá duro
somente para te acompanhar ao teatro.


Estaremos dormindo quando ocorrer
o fim do Cosmos e apenas teremos
nossos membros por dentro da gente.


Morreremos em todas as frases escritas
e em todas as fotos guardadas em álbuns.


Seremos poeiras restantes do nosso universo.

domingo, 7 de junho de 2015

Cerejas Escuras

I
Dentre as venustas hetairas, com seus cabelos tingidos, olvidadas
em letras de livros, de escritos históricos, prima-se Aspásia, sofista
cortesã, nascida em Mileto, amante de Péricles, egéria de Sócrates.
Sábia, sabia gozar. Gozava de prestígio na sociedade de maridos de
mulheres que em seus lares adormeciam abstraídas com suas filhas.
Na face de toda menina transmutada em mulher refletia uma das três
fêmeas de Demóstenes, assim permanecendo até o instante em que
algumas pequenas pícaras se metamorfosearam em rebeldes medusas.


II
Todas mulheres, chamadas de bruxas, de putas, poetisas despidas de
preces, cruas, fugindo de catedrais góticas e confundindo os mortos,
que habitavam sepulcros sem luz, com fantasmas religiosos sem fé.
Joanas desciam à força de seus cavalos, cuspidas, surradas, afoitas,
madalenizadas dirigiam-se ao crucifixo sagrado no altar do perdão.
“Espero-te, por dentro, desnuda”, disse a primeira a sentir a brasa
cáustica nascida do ódio figadal dos piedosos crentes dos últimos
dias medievais do século XV do Calendário Juliano da Era Comum.


III
Mulheres nativas do solo latino corriam na mata enquanto seus pares
dormiam na morte. Capturadas por Quixotes, reclusas em moinhos de
vento, golpeadas pelo tempo eurocêntrico e pelo conceito dos brancos,
cobriam seus seios com o sangue escorrido sobre suas peles morenas
e no peito carregavam forçosamente a cruz missioneira, suportando o
peso de um dos maiores símbolos de opressão – ainda hoje louvado –
deste pálido ponto azul, chão de índias que já não dançam por chuva,
cultura e amor, mas que chovem em lágrimas refertas de corte e de dor.


IV
Femininas, sovietes, francesas, latinas, chinesas. Renascem todos os
dias. Marias, Cecílias, Carmelas, Sofias, Emílias. Adormecem todas as
noites. Mulheres sorrindo sem pudor, como quis Clarice, e despidas de
silêncio. Fêmeas, irmãs, amigas, mães, proletárias, independentes de
paixão. Demasiadamente vivas, sinteticamente duras, plenas de frases
sobre as linhas dos corpos, sobre as páginas da existência, sob o céu
surreal, e, apesar de apagadas dos escritos da Estória, sempre haverá,
na História, o sangue escuro de cada uma das vítimas do machismo.