segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Quando me vi entre Oneiros

Quando já não entrava vento por aquela parte entreaberta da vidraça da janela, quando não mais se ouvia os garotos, que bebiam conhaque com café do outro lado da rua, pedirem beijos às garotas que saíam da escola de balé que ficava em um antigo prédio cor de pêssego na esquina, quando já nem se via prédios velhos pelo bairro e muito menos bailarinas, foi que percebi seu sumiço de meu quarto. A janela ainda estava entreaberta e, na calçada do outro lado da rua, havia uma garrafa de conhaque vazia. Mulheres caminhavam apressadas, arrastando seus filhos pelos braços, enquanto homens subitamente atacavam os táxis que trafegavam acelerados. Meus livros, que já se mostravam amarelados, diziam dez anos. Talvez quinze. Acho que sumiços nos causam isto: a perda da contagem do tempo. Apenas esperamos. Sentamos. Fingimos ler. Fingimos ligar a tevê. Fingimos cuidar o trajeto dos ponteiros do relógio. Fingimos respirar. O tempo, por vingança, acelera quando fingimos não sentir, e profundamente os sentidos se afloram até nos darmos conta de que sobreviver não é o mesmo que viver. E a maioria apenas sobrevive. Lembro-me de que em uma noite qualquer você me disse para deixar minha mente vazia, pois assim não ficaria rolando durante horas pela cama e conseguiria dormir mais rápido. Talvez por isso tenho pensado que, se todos esvaziassem suas mentes e somente acumulassem memórias diárias, as coisas funcionariam de modo mais fácil. Quem sabe desse jeito, dissimulando e esquecendo, sentiríamos apenas uma vez na vida, e assim seria mais simples para viver: hoje não me recordaria daquilo que ontem senti e amanhã sentiria algo novo que apagaria o que foi sentido hoje. É engraçado: tentamos fugir de tudo o que nos torna vivos por medo de que isso venha a nos matar. Por exemplo: hoje, após uma década sentada em um canapé sem me dar conta de seu sumiço, resolvi devanear para tentar esquecer o que perdi quando percebi que o perdi, e assim continuo perdendo – perdendo-me. É que o caminho das fugas sempre me pareceu mais prático. Permaneço fugindo de mim em mim. Perco-me em mim.

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Quando Quimera fugiu de Anatólia

Ao caminhar sobre velhas calçadas de lajota de uma florida rua do meu bairro, sem me preocupar com os vizinhos que retornam cansados do trabalho e com as crianças que brincam sob árvores, voo até o meu lugar mais bonito e me encontro entre pessoas azuis. Com roxos chapéus de magos, solitários arqueiros pedem-me poemas de amor sobre uma terra distante. Declamo sem pestanejar. O azul se torna mais anil. Seus arcos se transformam em violinos que acompanham algum canto élfico. Sou assim desde pequena: prefiro andar pelo teto e desbravar outros planetas a me prender a toda essa normalidade nauseabunda. Nas rodas de ciranda, eu era a menina que se dizia viking. Na roda de amigos, eu era a jovem que se intitulava Joana d’Arc. Na roda da vida, eu rodo ao contrário. Talvez por isso tenho de dormir sob um apanhador de sonhos. Quem sabe o motivo de minhas buscas esteja aí: nas quimeras. Para mim, o propósito sempre foi experimentar. Budismo. Xamanismo. Anarquismo. Comunismo. Faltam ismos neste mundo. Voo até encontrar.

Viver

Alguns espelhos refletiam nossa
eterna mocidade e outros apenas
acenavam com punhos de vidro.

Algumas portas se fechavam de
forma abrupta e outras somente
se abriam em um duro ranger.

Sua voz se infiltrava em meus
ouvidos como uma sinfonia
de inverno cinzento e infinito.

Meus pés deslizavam sobre os
seus lábios cálidos de queixas
e tremiam até o seu umbigo.

Sua face mórbida se encaixava
com exatidão entre os meus seios
onde dormia depois do amanhecer.

A aurora trazia o horizonte para
dentro da alcova e também um
caixote para o nosso segredo:

Morrer.

de.pois

Ele exibia expressões de arrependimento
de uma vida advinda de seu bovarismo
plenamente cego por seu ego frágil e só.
Apesar da exterioridade diminuta, que
dissimulava o arquétipo do século, ele
desconhecia a maioria dos livros e dos
filmes que valiam a pena. Seus medos
insanos – penosos e infantis – afirmavam
sua fragilidade de menino em busca de
autoafirmação. Deixo minha confissão:


Eu também fui assim quando tinha aqueles
dezenove anos, boy. Hoje sou outra. Crua.
Sou a mulher que nasci para ser, e jamais
abrirei mão de minha personalidade agreste.
Não precisa mais treinar frases pacóvias
em frente ao seu espelho de menino casto
nem chorar quando desabar no seu próprio
vazio. A vida flameja sob o firmamento e
o tempo enxuga seu líquido férvido com
as escolhas enxutas de cada indivíduo.


Preferências que por diversas vezes se
assolam em um destino frívolo de uma
limitada existência: sequer em palavras
remanescem metafóricos sentidos afoitos.
Nas frases cotidianas, a língua portuguesa
resplandece em meu esmalte vinho clássico,
declarando aquela sua mania cretina de não
isolar o vocativo com uma vital vírgula, boy.
Meus olhos míopes e astigmáticos – isentos
de misericórdia – proferem: je suis desolée.


Só para você ver: a questão – tão abrupta
proclama seu martírio infuso no melodrama
da coluna social de uma choldra jornalística.
Uma televisão multicolorida não afaga o
tormento oriundo de suas novelas mentais
e de seus hábitos inteiramente falidos.
Talvez algum versículo grifado em suas
pálpebras obscuras não permita que seus
intentos se realizem de modo vertiginoso
ou que cortem aqueles forçosos efeitos.


Sem epílogo remanescente:
Há o som de um trompete noturno.
Audível.
Silenciosamente musical.
Sensível.
Um espaço para partituras.
Repare bem em tudo o que não foi
escrito.