quinta-feira, 20 de maio de 2010

Impossível entender um coração

Essa ausência de sentimentos me entorpece de saudade do desconhecido, que me remete a imagens singulares e infinitas. Permaneço perplexa com tudo o que está a minha volta, contemplo-me serenamente e acabo voltando no tempo. Lembro-me muito bem de um grande amigo que tive, era mais do que um amigo e melhor do que um namorado, uma amizade inesquecível e repleta de afetos.

Não me recordo do dia em que nos conhecemos, mas creio que foi em junho de 1992, ambos com quatorze anos na época. Todas as tardes eu ia até a biblioteca municipal e me desprendia da realidade. Sempre gostei de ler, perdia horas do meu dia dentro do mundo da leitura, em busca da magia que não encontrava ao vivo e a cores. Em uma dessas tardes, percebi que a mesa, na qual costumava me sentar, estava ocupada por um menino, ele lia vorazmente.

Fiquei intrigada, nunca alguém havia sentado naquele lugar, ele era meu, era o meu espaço, ficava o mais longe possível de todos, por que ele tinha que sentar-se lá se haviam tantos lugares vagos? Caminhei em direção a ele, parei e o fitei por alguns segundos. Ele ergueu os olhos, levantou o rosto e perguntou se eu queria sentar... Permaneci em estado de choque, fiquei vermelha, o que eu estava fazendo ali? Sentei.

Comecei a ler pela oitava vez "O Crime do Padre Amaro", ele me olhou e disse pausadamente que admirava os livros daquele português bigodudo... Fiquei atônita, como ele podia ter a audácia de chamar o Eça de Queirós de “português bigodudo”? Eu o olhei com olhos de raiva... Mas só tive coragem de perguntar o que ele estava lendo. Respondeu-me que tinha começado a ler "Pé na Estrada", versão em português de "On the Road". Eu já tinha ouvido falar sobre o livro e quis saber se ele se interessava pelos beatniks, pela Contracultura e sobre tudo o que ela representava. Conversamos a tarde inteira. No outro dia, ele estava lá e assim seguiram-se os dias.

Ele lia o mesmo que eu, eu ouvia as mesmas músicas que ele. Não faltava assunto, só fazíamos silêncio quando alguém vinha chamar a nossa atenção ou quando começávamos a ler. Teve um dia que ele não foi, senti medo de perdê-lo, mesmo sabendo que ele não me pertencia (ou pelos menos pensava isso). Na tarde seguinte, quando o vi sentado lá, quis brigar. Onde já se viu ele me fazer esperar feito uma criança quando espera um doce? Ele sorriu e disse que tinha ido, para a cidade vizinha, comprar um presente para mim. Naquela hora estremeci e só quis abraçá-lo. Era uma corrente (a tenho em meu pescoço até hoje).

Passaram-se alguns anos e ele tinha se tornado meu confidente, eu falava e ele escutava, eu chorava e ele me acalmava, eu o amava muito, ele era um anjo intelectual na minha vida rotineira, ele era a minha rotina. Considerava-o metade de mim, um irmão que nunca havia tido. Ele dizia que me amava com o cérebro, pois não acreditava que amamos com o coração e isso me deixa dúvidas até hoje... Amamos com o cérebro ou com o coração? Amamos com tudo.

Quando comecei a namorar, ele foi o primeiro a saber, e eu, tola que era, na época não percebi que ele me amava de uma forma diferente, ele me amava como mulher, ele queria me amar e ser amado, só eu não havia enxergado, mas naquele instante pude entender. Ele me olhou com olhos aflitos, chorou, berrou, saiu. A amizade que tínhamos mudou, mas não deixamos de nos falar. O tempo seguia, eu começava e terminava novos romances, todos frustrados e ele sempre ali: sereno, pacato, silencioso, fraterno.

Mas a grande explosão atômica aconteceu quando ele veio para mim, espontaneamente, e disse que estava apaixonado: por outra. Isso doeu, me deixou acabada, não existia mais ar em meus pulmões, meu sangue havia se tornado transparente. Ficamos sem nos falar durante uma semana. Me senti traída, não queria o ver mais. Quanta incongruência... Eu havia negado o amor que ele quis me oferecer, não desejava mais nada além de sua amizade e agora, que o tinha perdido de vez, eu o queria somente para mim.

Ele começou um romance perfeito, acabamos nos afastando. Nossa amizade completava cinco anos. Mudei de cidade e comecei a cursar Letras. Ele também deixou a nossa pequena cidade, o seu namoro terminou, não sei se ele fez faculdade, não sei se encontrou novos amores, não sei se ainda pensa em mim. Será que sente a mesma nostalgia que eu? Hoje sou professora em uma universidade e já escrevi dois livros. Espero que ele tenha lido, também espero um dia reencontrar o meu grande amigo e poder dizer a ele que ele foi o meu verdadeiro e único amor.

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