quarta-feira, 30 de outubro de 2019

não neva mas chove

é quase novembro e a chuva
não para
as calçadas parecem espelhos
de água
e as janelas dos prédios permanecem
fechadas


ontem enquanto andávamos pelo bairro
depois do cinema
meus calçados ficaram completamente
encharcados
que até pensei em jogar fora minhas meias


(aquelas que você acha engraçadas
legal que as comprei um pouco antes de te conhecer)


pelo menos a chuva que molhou os meus pés
te manteve em pé após o plantão e é lógico que o
filme valeu toda água e risada da noite de ontem
ao menos você não teve que usar nosso tempo
assistindo ao documentário sobre o alasca

(espero que este vício meu em breve vire seu)

é notório que documentários me agradam
e que pessoas com medo de ursos me matam de rir


fora isso
        e ao frio em demasia
é bom te ter como companhia às cinco e meia
deste dia

domingo, 18 de agosto de 2019

jazz e cozinha

sempre gostei de ouvir jazz enquanto
cozinho cogumelos com café coado
e bebo vinho de uva pinot noir porque
harmoniza delicadamente com o prato
nesses momentos percebo na música
uma leveza diferente daquela das taças
que se enchem sozinhas durante o jantar
e a gente se perde entre baker e monk
ignorando o tic-tac do tempo que para
e redescobrindo a maturidade do jazz
talvez por isso combine tanto comigo
pois sempre tive uma década a mais
nos pretextos e na idade e até no amar
porém não importa de que ano veio
se há no trompete e no piano e no sax
uma vida inteira de sentidos a toda
essa gente que enche a cozinha com
vinho comida jazz poesia
e um pouco de amor

quarta-feira, 17 de julho de 2019

árvore-da-vida

estranho foi ontem quando acordei
no meio da noite e te segurei pelas mãos
como se a gravidade fosse mais
é algo que não sei descrever (e tudo bem)
pelo menos acho justa esta amizade
que tenho contigo e por ti sei dizer
algumas verdades sem me doer
já te contei sobre a minha infância
na casa de meus avós? às vezes
gostava de me sentar no final do pomar
e jogar algumas frutas para os animais
eram vacas enormes e os filhos delas
eles comiam todas as frutas e com os
olhos pediam mais e eu não me importava
em arrancar todas as laranjas das laranjeiras
para alimentar aqueles meus bichos amigos
hoje depois de alguns anos e do fato
(aquele que já não menciono tanto)
senti vontade de voltar e de me sentar na
grama verde do final do pomar e esperar
até algum animal silenciosamente pedir fruta
mas não há mais animais (há frutas)
sabe que das durezas da vida a pior delas
é não poder rebobinar os bons sentimentos
então eu finjo que os sinto quando coloco
aquela música para tocar repetidamente
durante estas infinitas noites de inverno
sei que através delas tu também tens os teus
problemas e quão sérios eles são e talvez
não tenham solução (e tudo bem) porque
nem tudo acontece para terminar bem
posso contar em uma mão o que me
machucou no último ano e acho poético
mas o tanto que sofri pelo efêmero
sabe? não é bonito escrever nem narrar
(desculpa te ouvir mais do que sei falar)
então me desperto à noite e te peço
encarecidamente para segurar minhas mãos
sinto dor ao perder os dedos que me tocam
talvez seja isto que me assombra desde o pomar
não é mesmo? eu nunca quis perder as laranjas
para os animais mas não sabia como negar
a eles aqueles momentos de alegria por ganhar
frutas novas recém colhidas das laranjeiras
as árvores do pomar da minha infância

morse

não tem a cor do fim da tarde

nem a morte da manhã



não é pausa

não é lágrima



incorreta

a ideia de que é calma



não é signo

nem dorso

nem terço

não acalma



não é surto

nem discurso

não é sexo

nem amigo

não combina



não come

nem mata

não alimenta

nem sacia



não mente

não demora

não dorme no ponto

não vai embora

mas não fica



não segue

não persegue

não insiste

não desiste

nem resiste



se bate bateu

porque



o amor é apenas um telégrafo

terça-feira, 2 de julho de 2019

hipersensibilidade ao frio

sólido inverno que sinto nos ossos


o naufrágio deixado de lado:
por não usar de justificativa
inexistente

o ponto forte daqui:
sempre fui o que precisei ser
verdadeiramente


gélido vento que sinto na face


ao norte do caminho:
a estabilidade sinestética
unicamente

de peito aberto:
conquistando os sentidos
de tudo
no mundo
na ida
aos poucos
na vida
de partida

segunda-feira, 17 de junho de 2019

há uma luz por aí

há uma luz em mim
desejando te ultrapassar
aos poucos e com certo
cuidado


há uma nova luz nascendo
dentro de mim
que ocupará nossos
corações


porque permanecerá comigo
mas também irá contigo


aonde
não sei
porém há uma luz
ela é minha e tua


há uma luz em ti
que já foi minha
dei-te aos poucos
e com certo cuidado


pois penso que esta luz
sempre foi mais tua
do que minha

sexta-feira, 7 de junho de 2019

tempo

há tempo para se dar
a entrega é contada a cada minuto

há tempo em que se dá só
nos ponteiros não existem segundos

há tempo que não volta
o silêncio permanece atento nas horas

há tempo em que o tempo é vago
nele a gente se perde
se dá
e só

minha fé

não quero chamar
loucura
essa consideração equidistante
nossa aventura
você vem
amiga
e talvez retorne mais tarde
e não volte

não quero negar
o afeto
o ponto em que sinto
sempre aberto
referto desse apego
que juro manter
discreto

não assumo o medo
mas sigo
o nosso segredo
ainda que sucumba
no escuro
você tem a luz
que me move

não busco o engano
mas só
vou até o último andar
e no plano dos sentimentos
redescubro o silêncio
seguro de amar
seus dons

não espero o novo
nem o velho
a guerra ou a paz
e agradeço a surpresa
o mistério
que nasce e morre
aos seus pés

imessage

sempre gostei dessas mensagens antigas
que me chegam codificadas à noite
antes que eu deixe peito e mente a sós
elas surgem no canto da tela e eu leio
e releio e arquivo e guardo todas comigo


sempre gostei dessas mensagens antigas
que me chegam repetidas vezes na vida
antes que eu abandone meus paradigmas
e não mais encontre soluções possíveis
talvez eu não saiba não guardar todas comigo


então coleciono todas essas mensagens antigas
que eu espero continuar encontrando no canto
da tela do meu celular – à noite e ao longo
da vida – enquanto houver bateria

lexical

seus olhos: meu dicionário
todas as frases multiplicam-se
e alteram os reais significados
seus sentidos submetidos ao
submerso diagnóstico da língua
verdade seja dita
não há extremo entre parênteses
ou vírgulas perdidas nas linhas
de seu texto corporal
todos os gestos dos versos
absurdos são promessas findas
em algum escrito sazonal
na pele os poemas perdem
os porquês e as reticências
são riscos que ficam e marcam
são ilegíveis sentidos vagos
minhas mãos: seu vocabulário

segunda-feira, 3 de junho de 2019

postal perdido

ontem os postais do erico

caíram
da
minha
 janela
           
hoje eu guardei um postal
que você me deu
dentro
de
um
livro
seu

não há mais nenhum postal
para postar ou para perder

não há nenhum postal
que me ajude a esquecer

o dia em que ao vento te vi bonita
de tão bonita parou o

tempo

foi quando senti que não faria sentido
te transformar em um postal

perdido

terça-feira, 14 de maio de 2019

creme de mandioquinha

cozinhar também
é inventar poemas

terça-feira, 7 de maio de 2019

amor

honestamente
no meu peito sempre esteve presente o vórtice dos sentimentos
e a valentia de me atirar ao tramite estreito do precipício alheio
reconhecer-me em cada início de catástrofe nunca foi um pesadelo
esse desastre já nasceu com toda gente e vem de outro hemisfério
não inventaram para ser escárnio de uma multidão indiferente
não somaram aos anos malogrados nem sentenciaram corações
permitiram a licença poética a cada verso do sentir compartilhado
abriram os portões das terras a serem desbravadas por todas e todos
sem designar autoridades ou determinar protótipos ou dar desculpas


é verdade
que no meu peito sempre esteve presente o vórtice dos sentimentos
e a valentia de vencer as mágoas e resguardar as memórias brandas
esquecer-me do dia triste do meu avô e de que neste mês fará um ano
foi mais difícil do que guardar todas as fotos dentro de cada livro
– e saiba que foi custoso deixar as fotos nos interiores dos livros –
na estante não há mão nem braço ou boca para tocar em outra
não há abraço ou respiração involuntária e lenta durante o sono
ao menos não há culpa como essa que ficou após a morte do vô
mas há os inventos e os pequenos pedaços de imagens cruas


de modo transcendente
no meu peito sempre esteve presente o vórtice dos sentimentos
e a valentia de ser e de saber amar
o amor

quinta-feira, 25 de abril de 2019

espaço e tempo: as caixas

choveu tanto que todas as caixas derreteram sozinhas
deixadas ao lado de sacos de lixos na calçada da rua
da minha casa e continuou chovendo muito que sequer
saí para fora do escritório depois do fim do expediente
e não comprei café e água ou chá e vinho e qualquer
coisa que possa me alimentar e também te alimentar
porque eu sempre me preocupo se tu vais passar fome
depois de me aguentar por quatro horas reclamando
que já não tenho minutos para gastar em algumas folhas
de processos velhos refertos de ácaros e de mentiras
e quando parar de chover – porque em um momento,
meu amor, não haverá mais chuva – não perderei o meu
tempo já chamado de subjetivo ou de noção a priori
e como kant negarei a realidade dele e penso que pelo
bem do sujeito desta oração farei o mesmo conosco
sem arrependimentos ou sentimentos e ressentimentos
então depois de encerrado todo o dilúvio e de toda água
potável haver acabado tu compreenderás que era fonte
esgotável em um tempo de intuição interna não real
como objeto e que não será possível reconstruir as caixas
que foram deixadas sozinhas do lado de fora da casa

sábado, 6 de abril de 2019

na cidade

à noite o céu é mais bonito no campo
inventam-se estórias sobre cometas
e crenças antigas dos pais dos avós
acompanham o vento que apaga o fogo
no chão as veredas perenes são firmes
distantes estão as metrópoles e seus guetos
e dentro o desejo de sair em silêncio
árduo êxodo de lembranças bucólicas
o campo carrega muitos segredos
em contrapartida no céu da capital
há menos pingentes e vaga-lumes
as luzes acendem sozinhas à noite
na esquina da rua e inertes na sala
vidraças trincadas prendem o ar
sufocadas como se doentes fossem
nas janelas dos prédios de hospitais
denominem independência moderna
individualista ou qualquer terminologia
solta em um artigo de revista digital
o tempo é honesto de certo modo
parados estavam os dois quando
perderam o medo do movimento
como quem se perde na cidade
perderam-se imóveis do lado
oposto de cada calçada deserta
uma rua referta de carros blindados
inquieta paisagem contemporânea
a cidade ajuda a guardar os segredos