Quando
já não entrava vento por aquela parte entreaberta da vidraça da janela, quando não
mais se ouvia os garotos, que bebiam conhaque com café do outro lado da rua,
pedirem beijos às garotas que saíam da escola de balé que ficava em um antigo
prédio cor de pêssego na esquina, quando já nem se via prédios velhos pelo
bairro e muito menos bailarinas, foi que percebi seu sumiço de meu quarto. A
janela ainda estava entreaberta e, na calçada do outro lado da rua, havia uma
garrafa de conhaque vazia. Mulheres caminhavam apressadas, arrastando seus
filhos pelos braços, enquanto homens subitamente atacavam os táxis que
trafegavam acelerados. Meus livros, que já se mostravam amarelados, diziam dez
anos. Talvez quinze. Acho que sumiços nos causam isto: a perda da contagem do
tempo. Apenas esperamos. Sentamos. Fingimos ler. Fingimos ligar a tevê.
Fingimos cuidar o trajeto dos ponteiros do relógio. Fingimos respirar. O tempo,
por vingança, acelera quando fingimos não sentir, e profundamente os sentidos
se afloram até nos darmos conta de que sobreviver não é o mesmo que viver. E a
maioria apenas sobrevive. Lembro-me de que em uma noite qualquer você me disse
para deixar minha mente vazia, pois assim não ficaria rolando durante horas pela
cama e conseguiria dormir mais rápido. Talvez por isso tenho pensado que, se
todos esvaziassem suas mentes e somente acumulassem memórias diárias, as coisas
funcionariam de modo mais fácil. Quem sabe desse jeito, dissimulando e
esquecendo, sentiríamos apenas uma vez na vida, e assim seria mais simples para
viver: hoje não me recordaria daquilo que ontem senti e amanhã sentiria algo
novo que apagaria o que foi sentido hoje. É engraçado: tentamos fugir de tudo o
que nos torna vivos por medo de que isso venha a nos matar. Por exemplo: hoje,
após uma década sentada em um canapé sem me dar conta de seu sumiço, resolvi
devanear para tentar esquecer o que perdi quando percebi que o perdi, e assim
continuo perdendo – perdendo-me. É que o caminho das fugas sempre me pareceu
mais prático. Permaneço fugindo de mim em mim. Perco-me em mim.
segunda-feira, 21 de setembro de 2015
terça-feira, 8 de setembro de 2015
Quando Quimera fugiu de Anatólia
Ao
caminhar sobre velhas calçadas de lajota de uma florida rua do meu bairro, sem
me preocupar com os vizinhos que retornam cansados do trabalho e com as
crianças que brincam sob árvores, voo até o meu lugar mais bonito e me encontro
entre pessoas azuis. Com roxos chapéus de magos, solitários arqueiros pedem-me
poemas de amor sobre uma terra distante. Declamo sem pestanejar. O azul se
torna mais anil. Seus arcos se transformam em violinos que acompanham algum
canto élfico. Sou assim desde pequena: prefiro andar pelo teto e desbravar
outros planetas a me prender a toda essa normalidade nauseabunda. Nas rodas de ciranda,
eu era a menina que se dizia viking. Na roda de amigos, eu era a jovem que se
intitulava Joana d’Arc. Na roda da vida, eu rodo ao contrário. Talvez por isso
tenho de dormir sob um apanhador de sonhos. Quem sabe o motivo de minhas buscas
esteja aí: nas quimeras. Para mim, o propósito sempre foi experimentar. Budismo.
Xamanismo. Anarquismo. Comunismo. Faltam ismos neste mundo. Voo até encontrar.
Viver
Alguns espelhos
refletiam nossa
eterna mocidade
e outros apenas
acenavam com
punhos de vidro.
Algumas portas
se fechavam de
forma abrupta e
outras somente
se abriam em um
duro ranger.
Sua voz se
infiltrava em meus
ouvidos como uma
sinfonia
de inverno
cinzento e infinito.
Meus pés
deslizavam sobre os
seus lábios
cálidos de queixas
e tremiam até o
seu umbigo.
Sua face mórbida
se encaixava
com exatidão
entre os meus seios
onde dormia
depois do amanhecer.
A aurora trazia
o horizonte para
dentro da alcova
e também um
caixote para o
nosso segredo:
Morrer.
de.pois
Ele exibia
expressões de arrependimento
de uma vida
advinda de seu bovarismo
plenamente cego
por seu ego frágil e só.
Apesar da
exterioridade diminuta, que
dissimulava o
arquétipo do século, ele
desconhecia a
maioria dos livros e dos
filmes que
valiam a pena. Seus medos
insanos –
penosos e infantis – afirmavam
sua fragilidade
de menino em busca de
autoafirmação. Deixo
minha confissão:
Eu também fui
assim quando tinha aqueles
dezenove anos, boy. Hoje sou outra. Crua.
Sou a mulher que
nasci para ser, e jamais
abrirei mão de minha
personalidade agreste.
Não precisa mais
treinar frases pacóvias
em frente ao seu
espelho de menino casto
nem chorar
quando desabar no seu próprio
vazio. A vida
flameja sob o firmamento e
o tempo enxuga
seu líquido férvido com
as escolhas
enxutas de cada indivíduo.
Preferências que
por diversas vezes se
assolam em um
destino frívolo de uma
limitada
existência: sequer em palavras
remanescem
metafóricos sentidos afoitos.
Nas frases cotidianas,
a língua portuguesa
resplandece em
meu esmalte vinho clássico,
declarando
aquela sua mania cretina de não
isolar o vocativo
com uma vital vírgula, boy.
Meus olhos
míopes e astigmáticos – isentos
de misericórdia
– proferem: je suis desolée.
Só para você
ver: a questão – tão abrupta
proclama seu
martírio infuso no melodrama
da coluna social
de uma choldra jornalística.
Uma televisão
multicolorida não afaga o
tormento oriundo
de suas novelas mentais
e de seus
hábitos inteiramente falidos.
Talvez algum
versículo grifado em suas
pálpebras
obscuras não permita que seus
intentos se
realizem de modo vertiginoso
ou que cortem
aqueles forçosos efeitos.
Sem epílogo
remanescente:
Há o som de um trompete
noturno.
Audível.
Silenciosamente musical.
Sensível.
Um espaço para
partituras.
Repare bem em
tudo o que não foi
escrito.
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